Todo dia é dia de produção de memória
- Fernanda Barreto
- Sep 4, 2023
- 3 min read
Eu penso bastante sobre a minha relação com o conceito de “memória”. Ele me parece um dos mais fascinantes da humanidade. Guardar registros para sempre. Em um papel, em algum lugar da cabeça, ou no fundo no coração. A memória da dor essa então parece que não tem força para sumir. As vezes ela ocupa tanto espaço dentro da gente que até atrapalha a nossa relação de gratidão com as boas lembranças.
Ao pensar na minha relação com a memória, primeiro eu penso nos álbuns de viagem e de infância que minha mãe sempre fez. Penso no meu interesse por História na escola, o que de alguma forma também impactou na minha escolha pelo Jornalismo na faculdade. Penso no “Cromossoma X”, encontros que fazíamos em família, somente as mulheres, de diferentes gerações para estreitar o contato e, o que para mim era o mais interessante, ouvir as histórias de família, de um tempo que não vivi, mas que faz parte do que eu sou.
Diante da infância sofrida da minha mãe, parece que ela buscou colocar pedras em cima de suas memórias, para tentar esquecer a dor. Quem dera que fosse fácil, né? O resultado disso foi muito mais páginas em branco sobre a família da minha mãe. Ouvimos poucas histórias, as fotos são mais raras, a rede de contato é pequena. Parece que ficam lacunas para explicar algumas coisas. Eis que recentemente descobrimos um grande álbum “Cartas de Minha Mãe”. Registros diversos que minha mãe guardou de sua mãe. Cartas para parentes na França, planta da casa onde morava em Belo Horizonte, entre outros. Muitas novidades pra mim, a maioria ouvidas pela primeira vez, aos meus 42 anos.
Na muito mais numerosa família do meu pai, a lista de memórias parece infinita. Quantas histórias, parentes distantes que cruzo na rua e nem reconheço, conexões com a História com letra maiúscula. Recentemente, um primo resgatou um registro único. Uma ata de uma reunião do CNPq onde nosso bisavô estava presente durante uma palestra do físico J Robert Oppenheimer, o “pai” da bomba atômica, cuja história foi contada em filme recente. Isso foi em julho de 1953. Que preciosidade de registro.
Hoje em dia, eu, que acredito cada vez menos em coincidência e cada vez mais em sincronicidade, tenho uma relação com a memória que passa pelo medo. Com o Alzheimer do meu pai e o processo demencial da minha mãe, parece que a memória escorre pelas minhas mãos. Lamento pelas histórias do passado que não vou mais ouvir, lamento pelas vivências do presente que eles não vão mais se lembrar. Fora o medo do meu futuro, mas aí eu tento não pensar muito nisso enquanto cuido de mim como posso e sigo confiando na Ciência.
Esse tema é recorrente na minha terapia. Minha analista me provoca constantemente: “todo dia é um dia de produção de memória”. E acho que é por aí. É um exercício diário de construção de uma nova imagem, de ressignificação. Despedir-se de um histórico com ternura, com reconhecimento, com aplausos. Mas cuidar para não ficar refém do passado.
Tem partidas que doem mais porque o encontro foi precioso. Em uma atitude que pode parecer “Poliana” demais, mas é um bom exercício, buscar agradecer mais pelos encontros, pelas lembranças, pelo que ficou para trás. Pensar que fomos privilegiados por viver aquilo. Mesmo que o tempo tenha sido mais curto do que a gente queria. As memórias seguirão vivas dentro de nós.
Lindo texto! Cheio de profundidade e leve ao mesmo tempo. Deu pra sentir, sabe? Que máximo ter encontrado esse álbum de cartas da sua mãe! E as reuniões das mulheres da familia? Adorei isso!
Que preciosidade de álbum! E de registro de ata!
Quanta história pode ficar registrada num simples papel?!